quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Leito de Verão



Pelas ruas endiabradas o calor do verão se estica violentamente, enfiando-se em becos, bueiros, buracos no asfalto e invadindo sorrateiramente as casas por onde passa. Um demônio de pó seco se enfiando pelos buracos de fechaduras, passando por debaixo das portas e pelas falhas do assoalho. O ar range pela garganta ao entrar, queima pulmões, ferve nervos e transforma cada filete de vontade em cinzas. Desmaios, altas súbitas de pressão, infartos e corpos pelo chão. Um demônio se esgueira por baixo do assoalho deixando tilintar sua risada maliciosa como sinetas do inferno.

O verão chega junto do enxame de demônios que, expulsos do inferno pelo próprio clima devastador que lá se instala pela estação, transformam ruas, casas e prédios em seus infernos particulares. Vampiros bebendo de nosso sangue, o líquido se esvaindo de nossas veias, a sede se instaura simbioticamente em nossa alma e consome cada grama de sanidade. No aguardo de um gole refrescante que jamais chega, logo nos vemos vagando pelas ruas, erguendo bíblia, alcorão, Bhagavad Gita e, sem pudor, abordando os passantes - “O fim está próximo! Vocês não veem? O inferno já se instaurou na Terra! Demônios invadiram nossas casas, secaram nossos rios e almas! Dez mil anos de escuridão começam hoje!”, mas em alguns poucos meses dez milênios se acabam e os ventos angelicais do leste expulsam os demônios que por toda uma era tomaram posse dessa terra.
Contudo, até que cheguem os arcanjos, andamos descalços pela brasa. Não pelo sadismo dos demônios, tampouco por autoflagelação, mas justamente para confrontar o masoquismo que seria sufocar os pés com o uso satânico de sapatos. Queimam meus pés sobre a brasa, queimam minhas mãos sob o sol. O sangue em chamas pulsa das extremidades para meu peito e lá queima em mim um infarto de verão, tão passageiro quanto seria a chuva do mesmo, mas impiedosamente menos agradável. Minha consciência se deixa cair na escuridão fervente.

Queimam minhas retinas. O brilho das lâmpadas do quarto em aliança com a luz solar entrando pela janela juntas se refletem na brancura angelical do hospital. Sem que, contudo, o calor das chamas infernais deixe de lamber fronhas e lençóis. Meus olhos, ainda se acostumando com a luminosidade, buscam a enfermeira pelo quarto e se deparam com uma jovem ruiva, não muito alta, com os cabelos ondulados presos em coque, traços delicados e um sorriso reconfortante nos lábios, falando com o paciente do leito ao lado, o qual aparenta ter sofrido queimaduras severas em um incêndio. “Não é a enfermeira certa” penso comigo mesmo. Mas eu a encontrarei, ainda há uma vida de leitos para encontrá-la.

Ou é o cansaço, ou as drogas que me enfiam pelas veias, ou o travesseiro quente não chega ser tão desconfortável quanto rocha fumegante. Recosto minha cabeça e o sono preenche minha alma. “Se o mundo de Morfeu lhe apraz, o fim de cada dia é um final feliz” já me disseram. Porém quando as chamas abrasadoras da estação preenchem sonhos febris, só se pode encontrar ambições não alcançadas, mas que são caçadas com determinação tão sólida e implacável quanto um poderoso iceberg perante as chamas de um palito de fósforo. “A enfermeira. Eu encontrarei a certa. Encontrarei ela.”, enquanto lá fora, em um futuro agora distante, ecoa o vento como o bater das asas de anjos, trazendo o aroma de uma nova e açucarada estação capaz de acalmar o coração incendiário do verão e trazer paz, mesmo que temporária, para essa terra. “Para minha alma, no entanto, não haverá paz até encontrá-la”, deixo retumbar pela minha mente as palavras, se chocando e ricocheteando pelas paredes de meu crânio no eco eterno da verdade.