Pelas ruas endiabradas o calor do verão se estica
violentamente, enfiando-se em becos, bueiros, buracos no asfalto e invadindo sorrateiramente
as casas por onde passa. Um demônio de pó seco se enfiando pelos buracos de
fechaduras, passando por debaixo das portas e pelas falhas do assoalho. O ar
range pela garganta ao entrar, queima pulmões, ferve nervos e transforma cada
filete de vontade em cinzas. Desmaios, altas súbitas de pressão, infartos e
corpos pelo chão. Um demônio se esgueira por baixo do assoalho deixando
tilintar sua risada maliciosa como sinetas do inferno.
O verão chega junto do enxame de demônios que, expulsos do
inferno pelo próprio clima devastador que lá se instala pela estação, transformam
ruas, casas e prédios em seus infernos particulares. Vampiros bebendo de nosso
sangue, o líquido se esvaindo de nossas veias, a sede se instaura simbioticamente
em nossa alma e consome cada grama de sanidade. No aguardo de um gole
refrescante que jamais chega, logo nos vemos vagando pelas ruas, erguendo bíblia,
alcorão, Bhagavad Gita e, sem pudor, abordando os passantes - “O fim está
próximo! Vocês não veem? O inferno já se instaurou na Terra! Demônios invadiram
nossas casas, secaram nossos rios e almas! Dez mil anos de escuridão começam
hoje!”, mas em alguns poucos meses dez milênios se acabam e os ventos
angelicais do leste expulsam os demônios que por toda uma era tomaram posse
dessa terra.
Contudo, até que cheguem os arcanjos, andamos descalços pela
brasa. Não pelo sadismo dos demônios, tampouco por autoflagelação, mas
justamente para confrontar o masoquismo que seria sufocar os pés com o uso
satânico de sapatos. Queimam meus pés sobre a brasa, queimam minhas mãos sob o
sol. O sangue em chamas pulsa das extremidades para meu peito e lá queima em
mim um infarto de verão, tão passageiro quanto seria a chuva do mesmo, mas impiedosamente
menos agradável. Minha consciência se deixa cair na escuridão fervente.
Queimam minhas retinas. O brilho das lâmpadas do quarto
em aliança com a luz solar entrando pela janela juntas se refletem na brancura
angelical do hospital. Sem que, contudo, o calor das chamas infernais deixe de
lamber fronhas e lençóis. Meus olhos, ainda se acostumando com a luminosidade,
buscam a enfermeira pelo quarto e se deparam com uma jovem ruiva, não muito
alta, com os cabelos ondulados presos em coque, traços delicados e um sorriso
reconfortante nos lábios, falando com o paciente do leito ao lado, o qual
aparenta ter sofrido queimaduras severas em um incêndio. “Não é a enfermeira
certa” penso comigo mesmo. Mas eu a encontrarei, ainda há uma vida de leitos
para encontrá-la.
Ou é o cansaço, ou as drogas que me enfiam pelas veias, ou o
travesseiro quente não chega ser tão desconfortável quanto rocha fumegante. Recosto
minha cabeça e o sono preenche minha alma. “Se o mundo de Morfeu lhe apraz, o
fim de cada dia é um final feliz” já me disseram. Porém quando as chamas
abrasadoras da estação preenchem sonhos febris, só se pode encontrar ambições
não alcançadas, mas que são caçadas com determinação tão sólida e implacável
quanto um poderoso iceberg perante as chamas de um palito de fósforo. “A
enfermeira. Eu encontrarei a certa. Encontrarei ela.”, enquanto lá fora, em um
futuro agora distante, ecoa o vento como o bater das asas de anjos, trazendo
o aroma de uma nova e açucarada estação capaz de acalmar o coração incendiário
do verão e trazer paz, mesmo que temporária, para essa terra. “Para minha alma,
no entanto, não haverá paz até encontrá-la”, deixo retumbar pela minha mente as
palavras, se chocando e ricocheteando pelas paredes de meu crânio no eco eterno
da verdade.