quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Deneb, Altair e Vega

“Os olhos de uma criança desenham no vento”, ouço as palavras que meu avô um dia recitou, como o verso de um poema, ressuscitarem graças a máquina atemporal das lembranças. Sempre considerei meu avô um poeta, recitando intermitentemente versos dispersos de um grande poema sem início, meio ou fim, talvez o poema de sua vida. “Quando um homem faz algo que realmente ama, ele faz poesia” disse-me ele, “Perca mais tempo correndo atrás de fazer o que ama do que tentando amar o que faz”. Recitava palavras cujo sentido, durante muitos anos, me passaria despercebido, mas que sempre mantive guardadas comigo, protegidas, trancadas a chave em uma das gavetas mais belamente adornadas de minha memória.

Era um homem forte meu avô, lembro-me dele aos 80 anos de idade, arrastando sozinho uma grande tora de madeira a qual, sem a ajuda dele, foram precisos dez homens para puxar. Na época parecia ser um homem implacável, imune a qualquer doença ou dor, além de carregar consigo sempre um tom animado capaz de fazer qualquer homem mais jovem aparentar ser um velho carrancudo.

Um dia de Sol na praia, estava soltando pipa com pelo menos uma dúzia de carretéis emendados, soltando corda e deixando a pipa voar lá longe, onde mal se conseguia vê-la mais, fazendo-a, pensava eu, alcançar intrepidamente as alturas em que passavam os aviões e surpreendendo os pilotos lá no alto. Meu avô se aproximou, tampou a luz do Sol com a mão e apertou os olhos para tentar enxergar a pipa destemida e, com um sorriso calmo no rosto e segurança de suas palavras, recitou:

 - Os olhos de uma criança desenham no vento.

Tinha dez anos naquela época, havia acabado de ganhar minha primeira câmera fotográfica na época, analógica é claro. Penso que câmeras digitais naquele tempo eram exclusividade na NASA ou coisa assim. Ter uma analógica então era ser grande, capaz de capturar toda vida e beleza de um vislumbre em uma memória capaz de ser compartilhada com os outros. Capturei então em um flash aquela pipa ambiciosa que ansiava por dominar os céus junto dos aviões. Perguntavam-me “Por que tirou foto do céu sem nada?” e eu mostrava, sabiamente e orgulhosamente, que era muito mais que nada, ao apontar para um pontinho minúsculo, mas muito significativo, em meio a imensidão azul.

Naquela foto eu via tudo. Pássaros voando no horizonte, o som de seus gorgolejares, as pequenas nuvenzinhas lambendo a cauda de minha pipa. O balançar das ondas, o cheiro do mar, dos manguezais e o sabor de peixes e moluscos. Sol queimando minha pele enquanto pescava sentado nas ondas, jogando os peixes capturados dentro de um pequeno pedaço de mar que prendíamos em um galão. Lembro-me desses dias em minhas noites solitárias. As noites de minha infância jamais foram solitárias, apesar de serem passadas sozinho. Deitava-me na cama e, antes do sono me envolver, sonhava em me lançar no reflexo da lua no mar e nadar até o fundo, quase me afogando, mas colocando os pés nela. Me agachar, pegar uma “pedra” e morder. “Queijo”. Ficava horas a fio pela noite me aventurando por sonhos artificiais enquanto o sono, legítimo, se recusava a dar as caras.

Era uma criança insone, como se minha mente não se silenciasse por horas, impedindo-me de dormir. Passava a primeira hora tentando convencer o sono a me acompanhar e mais uma ou duas horas me distraindo, navegando pelas marés de estrelas. Quebrando a direita no Triângulo de Verão e conhecendo todas as belezas naturais de Andrômeda. Devido a essas noites visitando as estrelas desde a infância acabei por me tornar um adulto insone. Pelas noites sozinho, mesmo que nem sempre solitário, sentado na varanda, tomando emprestados do passado meus olhos de criança e desenhando no vento que se esticavam até as estrelas, um grande oceano, onde poderia mergulhar e nadar até a Lua, me aconchegar sobre o Triângulo de Verão e flertar com Andrômeda enquanto o sono se recusava a chegar.

Acho que aí faço poesia, pois é coisa que se ama.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Gastrite



A menina louca, completamente louca. Olhava sua foto, pensativo. Ela tinha se ido. Uma vida inteira ao seu lado e parece que foi num piscar de olhos. Nos seus últimos minutos, ela me disse: Venci seu câncer, bebê. E era verdade. Agonizava com esse câncer de estômago fazia anos, aquela história clássica de não ir ao médico e uma alimentação terrível. Mas agora não iria tratar de vez, ele me trazia boas lembranças de você, todas as vezes que passei em filas no hospital, ao receber o resultado dos exames, nos dia que só tomei chá e ficava com fome, você sempre estava lá, com suas mãos com um toque angelical, ao meu lado. Quando estava nos meus piores tempos, ela disse: Ei, bebê, aposto que vou antes de você. O que ficasse, teria que comer no primeiro lugar que jantamos juntos. Um fast food, claro.

Quando fomos jantar pela primeira vez, foi mais um encontro casual, não a beijei, só peguei na sua mão, de leve, as mãos que segurei durante tanto tempo. Mas essa não foi a melhor janta que já tive, uma das mais importantes, claro. A melhor janta que já tive, foi quando nos mudamos pela primeira vez para aquele apartamento do tamanho de um ovo. Antes de nos mudarmos, convidei ela para passear em um parque, sem qualquer objetivo, só ficar com ela até a noite cair, passando a mão nos seus cabelos enquanto apreciávamos tudo ao redor. E então, tive uma ideia rápida, mas muito boa. Peguei na sua mão e perguntei: Vamos nos mudar? Ela virou sua cabeça, sorriu, voltou a posição e disse que sim. Só isso, sim. Pensei por uns 20 minutos e então decidi que estava feito. Não ganhávamos muito e não nos conhecíamos a anos para já poupar. Nos poucos meses que nos amamos, juntamos pouco dinheiro, mas o suficiente para alugar por uns meses um apartamentinho longe da cidade, até arranjarmos um emprego e prosseguir com a vida. Chegamos sábado de manhã e fomos comprar pelo menos uma cama e mais algumas coisas para nosso futuro lar. Não imaginando o preço das coisas, acabamos só levando um colchão mesmo, dormiríamos no chão. Caminhando para casa ela olhou um avental, quadriculado, verde com branco em uma loja. Ela parou e falou: Temos que comprar esse avental. Fiz umas contas e resolvi não jantar no domingo e nem na segunda, então poderia comprar. Um colchão e um avental foram nossas primeiras compras. 

Ficamos dormindo durante a tarde devido a exaustão da viagem, acordamos e conversamos um pouco, apreciamos as paredes brancas e sem nada do quarto até que ela foi preparar a janta enquanto eu fumava um cigarro. Quando entrei na cozinha, vi a cena mais bonita da minha vida. Ela, de avental, descalça, cantarolando enquanto fazia a janta, ficava passando o peito do seu pés atrás de sua canela e exalava felicidade. Apreciei aquilo por longos minutos até que a envolvi por trás e a abracei. E todas as jantas foram assim. Ela sempre usava o avental, não porque precisava ou porque achava bonito ou qualquer outro motivo racional. Ela tinha que usar porque tinha que usar. Até para fazer um chá ela usava o avental. Birra, mas eu adorava ver aquilo. Ela de avental, se aventurando pela cozinha.

Augusto, seu nome. Nosso primeiro e único filho. Criado com tanto carinho e com todas as suas refeições feita com avental. Quando ele foi estudar fora de casa, aos 19 anos, senti um pontadinha no estômago e uma queimação tão forte que nunca senti antes. Era hora de ir ver o médico. Uma gastritezinha, tinha que ir constantemente ao médico, mas óbvio que não fui. Além de ser caro, dava pra aguentar. 

A gastrite, diferente das minhas idas ao médico, era constante. Vivia com uma queimação na barriga. Vivia não, vivi. Passei anos com aquilo na esperança de não doer mais. Minha teimosia ainda ia me matar, e estava começando. Mas não tinha do que reclamar. Não ganhava bem e estava começando a comprar cigarros mais baratos, mas a vida estava no seu ápice. Eu acordava com ela, passava todo o tempo que podia ao seu lado. Nosso vegetarianismo começou nessa época. Passamos quase uma vida sem comer carne. Até hoje não comemos carne. Mas nada disso adiantou, aos 77 anos de idade, 30 deles sem comer carne, fui diagnosticado com câncer. Se a sua mão não estivesse segurando a minha nessa hora, quem teria que comer no fast food, seria você, bebê. Lembrarei para sempre de você vestindo um avental, me fazendo chá para poder amenizar a dor.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Mulher Invertida



Vestido branco esvoaçante, cachos castanhos caindo sobre os ombros e sorriso cativante florindo pelos lábios que um dia amadureceriam atraindo mil homens com sua doçura. Nas maçãs do rosto trazia dois pomos maduros e nos olhos duas joias cristalinas cor de mel. Por muitos anos a moça das laranjas, a qual durante a adolescência, tanto eu quanto meus companheiros de traquinagens e rivais no amor, desconhecemos por nome, arrancou meus suspiros durante as tardes calmas de verão sentado na varanda olhando os pássaros dançando entre as folhas do pomar que se esticava até o horizonte. Dizíamos que o mundo era belo até onde se estendia o pomar, depois as únicas novas cores que conheceríamos seriam tons de cinza e os pássaros ficariam desafinados pela a falta de vitamina. Até hoje não lembro de ter encontrado, entre as bobagens ditas quando criança, palavras que se mostraram mais verdadeiras.

A moça das laranjas era filha do Sr. Trovieli, dono de quase todos pomares da região, cujas propriedades se estendiam além dos laranjais e, além da riqueza, dotado de uma sabedoria e caráter firme – visível em seus cabelos e barba grisalhos – com que conquistava a admiração e respeito de todos habitantes das proximidades. Ela saia todas as tardes com seu vestido branco esvoaçante, suas sapatilhas, também brancas – que dizíamos serem mágicas, pois quando as calçava ninguém saberia dizer se ela estava caminhando, dançando ou saltitando e seus movimentos pareciam ser lentos e acelerados simultaneamente – além de seu chapéu de palha com aba larga, com uma faixa azul próxima da borda terminando em duas fitas azuis que caiam de um dos lados dançando junto de seu figurino angelical no ritmo do vento e das criaturas que por ele orquestravam. Carregava em suas mãos uma cesta de palha, até então vazia, com a qual voltaria ao final da tarde recheada de frutos maduros, mas não antes de desaparecer e ressurgir entre as árvores em sua dança de ninfa, cuja mitologia acreditávamos ter se originado da mesma forma que a lenda da moça, filha de Afrodite, tínhamos certeza, com olhos de mel onde homens, mulheres e crianças mergulhavam e se afogavam em doçura.

Rebeca Trovieli, cujo nome só descobrimos quando já havia deixado o casulo da puberdade e estava se mudando para cidade em busca de estudo, um de seus admiradores acabou por descobrir, simultaneamente, ambas informações enquanto se escondia sob a janela da grande casa dos Trovieli em um domingo, buscando apenas satisfazer seu vício ao ouvir a voz e sentir o perfume da moça. Partiu na segunda se manhã e, sem saber, causou a migração em massa de praticamente todos rapazes para cidade sob o falso pretexto de viajarem para estudar, errando pelas estradas seguindo o rastro deixado pelos passos perfumados de Afrodite.

Como era de se esperar, migrei junto deles sob o mesmo pretexto. Arrumei emprego em uma lanchonete, ganhando o bastante para uma refeição e meia por dia, enquanto morava em uma espelunca mais habitada por ratos e baratas que por gente. Não obtive notícias de Rebeca, até o dia em que entrou pela porta da lanchonete onde trabalhava, mais linda que nunca, havia trocado o vestido branco por uma saia delicada e elegante, cor de cobre, e justa sobre suas formas ressaltando a graciosidade, seus cachos castanhos agora quase alcançavam-lhe a cintura e ondulavam em movimentos hipnóticos. Seus lábios, cujos movimentos conseguiam ser mais hipnóticos que o de seus cachos, estavam vermelhos de batom e se fechavam sobre os do homem que a acompanhava em um baque estrondoso, fazendo voar para longe os meus sonhos de juventude, as únicas coisas que trazia na carteira.

O rapaz era alto, pelo menos meia dúzia de anos mais velho e trazia consigo o ar de riqueza e classe que eu jamais alcançaria com minhas roupas esfarrapadas e ausência do mínimo conhecimento de etiqueta. Saí mais cedo do trabalho para descobrir onde viviam, era um edifício imponente e com uma arquitetura riquíssima, “Se eu ganhasse uma dezena de vezes mais talvez tivesse dinheiro o bastante para financiar um mês de aluguel” pensava eu, e fui embora desiludido. Mas continuei com a rotina asquerosa para justificar minha migração. As vezes passava em frente ao edifício dela e a via entrando ou saindo com o braço envolto nele, as vezes iam na lanchonete em que trabalhava, mas nunca dirigi a palavra a nenhum deles. Chegou um dia em que não a encontrei mais. Não visitava a lanchonete a mais de um mês e havia o mesmo tempo não vislumbrava sua saída do edifício onde morava. Acabei me informando com o porteiro, afirmando ser um amigo de infância dela que tinha vindo visitá-la na cidade. Ele me respondeu com pesar:
- Você não soube do acidente? 

E contou a história de como a moça mais bela que já havia visto em vida um dia chegou a portaria com sacolas cheias de laranjas maduras e insistiu que não a ajudasse carregando-as, mesmo quando ficou sabendo que o elevador estava quebrado. Quando estava chegando em seu andar, uma das sacolas estourou e, escorregando nas laranjas caídas, acabou em uma queda horrível, girando e sendo espancada pelos degraus até parar na portaria depois de rolar por cinco andares de escadas. No fim ficou com a coluna completamente torcida, de forma que suas nádegas agora estavam para frente e os joelhos para trás. O rosto se manteve milagrosamente intacto após a queda que, de acordo com os médicos, deveria ter sido absolutamente fatal e que inclusive, ninguém sabe como, os nervos da coluna se mantiveram intactos, mesmo com as vértebras torcidas do avesso. Diziam que a Morte não teria coragem de ceifar a vida de uma jovem tão bela e que Deus não ousaria tirar o movimento das pernas de uma moça tão pura. Tampouco os médicos ousaram destorcer a coluna dela, visto que a condição de Rebeca era extremamente instável e do jeito que estava já carregava chances de sobrevivência praticamente nulas. O noivo ficou furioso quando descobriu que havia ficado aleijada, abandonou Rebeca, ainda desacordada, a própria sorte. Estava em coma há um mês e ninguém sabia dizer quando ou se acordaria.

O porteiro me passou o endereço do hospital onde ela estava internada e visitei-a algumas vezes, afirmando ser amigo de infância. Derramei uma enxurrada de lágrimas por ela e ninguém duvidou de que falava a verdade. Visitei-a no mínimo uma vez por semana durante 5 meses até que despertou, não me reconheceu, é claro, mas os médicos diziam “É normal que pacientes, após muito tempo em coma, não recuperem a memória toda de uma vez, ocorrendo progressivamente” e eu concordei “É, deve ser isso”. Me surpreendi junto dos médicos quando vimos a moça das laranjas, agora com a metade inferior invertida, se levantar e caminhar destrambelhadamente com passos, não mais graciosos como o de ninfa, mas confusos como o do folclórico Curupira.

Apesar de enfrentar o choque inicial após a saída do coma, a moça das laranjas, agora uma mulher invertida, em pouco tempo recuperou seu ar alegre e jovial capaz de seduzir qualquer homem que ousasse se aproximar demais ou que olhasse em seus olhos de mel por mais de que alguns segundos, se perdendo eternamente em um vórtice caramelado.

Após sair do hospital se desculpou comigo por não ter lembranças profundas minhas, apesar de realmente se lembrar de ter me visto próximo dos pomares em que caminhava na infância. Tentei me aproximar mais dela, porém, por mais simpática e alegre que sempre se mostrasse, eu não conseguia transpor a barreira que a dizia pertencer a um mundo além do meu, a mesma barreira que impediu a mim e os outros garotos de descobrirem o nome dela por quase 20 anos.

A mulher invertida agora caminhava pelas ruas deixando pegadas que levavam os seus admiradores a se perderem na mata, deixando nos homens não uma impressão de repulsa ou estranhamento e vista de sua “deficiência”, mas uma atração hipnótica pela forma com que conseguia manter o tronco curvado para traz, sensualmente, e por tempo indefinido sem se cansar. O homem que a abandonou no leito do hospital acabaria por rastejar aos seus pés implorando perdão, apavorado por sua própria estupidez de ter deixado uma mulher de tamanha formosura a própria sorte. Vendeu seu apartamento, carro e roupas, deixando todo seu dinheiro aos pés dela para provar seu amor, mas os impactos em sua cabeça, causadores do semestre em coma, aparentavam ter apagado todas memórias dele.

O ex-noivo se entregou a loucura e acabou com a própria vida, junto de outros homens jovens, velhos, solteiros e casados, com ou sem filhos. Todos se atiraram desesperadamente do abismo devido a intensidade do amor alucinado que consideravam impossível. As outras mulheres então acabaram por se desesperar com o completo abandono. O que aquela moça teria e elas não? Visualizaram então a coluna torcida. Em poucos dias dezenas de mulheres acabaram paraplégicas, tetraplégicas ou mortas na tentativa de tornarem-se mulheres invertidas, sem sucesso algum.

Seis meses após sair do coma, a mulher invertida deixou para trás uma cidade de suicidas e cadeirantes, voltando para os pomares onde dançaria novamente como uma ninfa, deixando pegadas contrárias pela terra e levando homens a perdição eterna em meio aos laranjais.

Dinossauros

Quando consegui o dinheiro para comprar o carro dos meus sonhos, a nova geração de bosta me dizia: Não compre carro, viaje.   Pra que carro? Vai só poluir e se estressar no trânsito. Visite o mundo, agrega mais que um carro. Fui na história e  acabei usando toda minha suada poupança e então comprei tudo. Era bastante dinheiro então iria para muitos lugares, em  todos os continentes. Com toda a ladainha no ouvido, acabei me demitindo e fui viajar o mundo por algum tempo. A ideia era  boa, admito.

Levei algumas semanas planejando tudo para visitar o maior número de lugares possíveis de forma inteligente, sem gastar  horrores. Comprei minha primeira passagem e fui. Europa. Portugal. Começou bem, visitei uns lugares legais, comi umas  comidas diferentes. Resumindo, foi uma boa coisa. Me senti muito bem. No caminho da próxima parada, respirei bem fundo e  pensei: Deveria ter feito isso muito tempo atrás. Dormi como um anjo. Fomos seguindo viagem. Os próximos dias foram bons,  mas como tudo na vida, uma hora fica sem graça. Quando cheguei na Itália, estava de saco cheio. Poderia ter voltado para  casa e ainda dar uma boa entrada no carro. Mas segui viagem, afinal, é sempre bom viajar, não? Quando cheguei em Roma,  percebi que viajar não era lá essas coisas, as fotos eram tiradas para você aparecer. Na torre de pisa tinha umas dezenas  de pessoas fazendo a mesma coisa, tentando "segurar" ela. Olhei aquilo, tirei um cigarro e acendi. Porra, poderia estar  dirigindo um belo carro agora, em casa.

Depois da Europa, seria Ásia, Oceania e então iria para África e finalmente a América, depois home, sweet home. Não nego  que me diverti, mas também não nego que achei um saco em certas horas. Quando fomos visitar as pirâmides do Egito, percebi  que aquilo tudo era uma grande bobagem. É um monte de pedra. Todos os lugares que visitei era um monte de pedra antigo. São  só as pirâmides. Desci do táxi, olhei por uns 20 segundos e fui embora. Tudo isso era um saco mesmo. Agentes de viagem são  o verdadeiro mal do mundo. Dei o dinheiro do meu sonhado carro para esses putos me levarem para ver um monte de coisa  antiga que seria melhor ver da tela do meu computador no conforto da minha casa. São só lugares antigos e históricos que  custam muito dinheiro. No fundo, viagem é a mais pura ostentação. É como a merda de um carro, só que são apenas fotos. Não  dá para acelerar e trocar marchas de uma foto. Só dá para olhar e falar para as pessoas que você foi. Se eu pudesse ver uns  dinossauros, umas batalhas campais medievais, a construção das pirâmides. E então sim, valeria a pena. Dinossauros!? Com  certeza valeria a pena.

A grande ironia é: Sou um professor de história. Digo, era. Abri mão desse emprego para fazer essa grande cagada. Agora lá  se vão uns 15 anos juntando dinheiro para não andar mais de ônibus. Não me desiludi com a profissão que seguia, gostava  dela. Só não gostava de viajar. Agora tinha que tentar pegar meu emprego de volta ou arranjar outro. Na segunda feira,  quando dei uma nota de 20 para o cobrador ele me disse que não tinha troco, senti uma leve vontade de morrer. Se  arrependimento matasse, pelo menos não teria que pegar esse ônibus.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Panetones de março

Não que fosse um emprego bom, mas eu gostava dele. Mesmo que não gostasse, teria que trabalhar. Quero esganar o puto que me disse que com faculdade se arranjava emprego bom. Fiquei 6 meses deitado no sofá com um diploma de jornalismo na mão e um terno esperando para ser usado. E ficaria por mais um bom tempo assim se não fosse uma ligação da minha mãe: "Filho, o dinheiro tá curto e acho que você não precisa mais. Boa sorte na sua nova vida. Deixaremos de depositar o dinheiro mês que vem, haha." Obviamente nunca fiz uma reserva na vida e tinha apenas mais um mês de dinheiro fácil.

Como todo bom vagabundo, fiz esse dinheiro se esticar por 3 meses até que resolvi levantar do sofá e procurar um emprego decente. Claro que todas as noites em claro e todos os dias dormindo pesaram na escolha, além de que trabalhos noturnos pagam adicional. Porteiro, região segura, horário: Madrugada. Excelente, era apenas temporário e seria bom a tranquilidade. Quanto tempo até arranjar um emprego? Até final de ano já arranjo algo na área, claro.

Fui escolhido por provavelmente ser o único candidato. Não durma no trabalho, fique atento pois sempre tem alguém querendo chegar. Madrugada? Pelo amor de Deus, isso nem parece verdade. Claro que temos as pessoas que voltam tarde, mas não deve ser como em outros turnos. É só não dormir, o que seria fácil e atender um ou outro puto meio bêbado chegando de uma festa. Tinha uma vagabunda que fez o mesmo curso que eu. Nunca nem me olhou na cara. E a piranha trabalhava na tv já.

O trabalho era calmo, monótono e tedioso. Mas eu gostava assim. Tive a brilhante idéia de, depois de me formar, ficar 1 mês sem fazer nada para poder descansar de tanto estudo. 1 mês sem fazer nada e você não quer voltar a rotina de antes. Talvez tenha cagado na minha vida pelos próximos anos. Ao chegar em novembro, já estava vivendo normalmente, única diferença é que  dormia de dia e acordava de noite para ir trabalhar e que estava estagnado num emprego. Combinei que trabalharia até 31 de dezembro e então seria mandado embora para começar a vida de jornalista. Tinha juntado um dinheirinho e poderia sobreviver uns meses. Preparei um bom currículo e esperei. Só mais uns dias... E então, o pior aconteceu: Os panetones. Todos os residentes do prédio queriam me dar "caixinha" para ajudar no fim de ano, o problema é que eles não queriam dar dinheiro, eles queriam dar o que sobra, panetone. Todo dia até meu último dia de trabalho eu ganhei panetone. E não era um só, eram vários. Geralmente das marcas mais baratas e raramente vinha um com chocolate, a maioria era das marcas ruins só com frutas cristalizadas. No começo não reclamei muito, afinal, eu até gosto de panetone e de ganhar comida de graça. O problema começou quando faltava 10 dias para o natal e eu tinha panetone até na sala. Oh, Deus, é muito panetone. Não que eu estivesse reclamando... Ao final do mês, eu tinha panetone até no armário do banheiro.

Como o prometido, fui mandado embora para ir atrás do meu sonho de ser âncora. Telefonei para todos os lugares possíveis, esperei, entreguei currículos onde pude e onde tinha vaga. Mas claro, o sol brilha para alguns poucos. Com o desespero batendo, resolvi apelar para algo que nunca quis, rádio. 1 mês depois dos currículos e algumas entrevistas, fui contratado por uma rádio de esportes para entrevistar alguns jogadores. Salário metade do que eu ganhava como porteiro e uma capa de chuva para quando chovesse. Cheguei feliz em casa pois seria um começo. Coloquei o terno e ele não servia mais. Mas está tudo ok, é só comprar outro. Ligo a tv e a vadia está lá entrevistando alguém. E eu aqui, comendo panetone em março, com um terno que não serve e uma capa de chuva do lado do sofá.