Vestido branco esvoaçante, cachos castanhos caindo sobre os
ombros e sorriso cativante florindo pelos lábios que um dia amadureceriam
atraindo mil homens com sua doçura. Nas maçãs do rosto trazia dois pomos
maduros e nos olhos duas joias cristalinas cor de mel. Por muitos anos a moça
das laranjas, a qual durante a adolescência, tanto eu quanto meus companheiros
de traquinagens e rivais no amor, desconhecemos por nome, arrancou meus
suspiros durante as tardes calmas de verão sentado na varanda olhando os
pássaros dançando entre as folhas do pomar que se esticava até o horizonte.
Dizíamos que o mundo era belo até onde se estendia o pomar, depois as únicas
novas cores que conheceríamos seriam tons de cinza e os pássaros ficariam
desafinados pela a falta de vitamina. Até hoje não lembro de ter encontrado,
entre as bobagens ditas quando criança, palavras que se mostraram mais
verdadeiras.
A moça das laranjas era filha do Sr. Trovieli, dono de quase
todos pomares da região, cujas propriedades se estendiam além dos laranjais e,
além da riqueza, dotado de uma sabedoria e caráter firme – visível em seus
cabelos e barba grisalhos – com que conquistava a admiração e respeito de todos
habitantes das proximidades. Ela saia todas as tardes com seu vestido branco
esvoaçante, suas sapatilhas, também brancas – que dizíamos serem mágicas, pois
quando as calçava ninguém saberia dizer se ela estava caminhando, dançando ou
saltitando e seus movimentos pareciam ser lentos e acelerados simultaneamente –
além de seu chapéu de palha com aba larga, com uma faixa azul próxima da borda
terminando em duas fitas azuis que caiam de um dos lados dançando junto de seu
figurino angelical no ritmo do vento e das criaturas que por ele orquestravam.
Carregava em suas mãos uma cesta de palha, até então vazia, com a qual voltaria
ao final da tarde recheada de frutos maduros, mas não antes de desaparecer e
ressurgir entre as árvores em sua dança de ninfa, cuja mitologia acreditávamos
ter se originado da mesma forma que a lenda da moça, filha de Afrodite,
tínhamos certeza, com olhos de mel onde homens, mulheres e crianças mergulhavam
e se afogavam em doçura.
Rebeca Trovieli, cujo nome só descobrimos quando já havia deixado
o casulo da puberdade e estava se mudando para cidade em busca de estudo, um de
seus admiradores acabou por descobrir, simultaneamente, ambas informações
enquanto se escondia sob a janela da grande casa dos Trovieli em um domingo,
buscando apenas satisfazer seu vício ao ouvir a voz e sentir o perfume da moça.
Partiu na segunda se manhã e, sem saber, causou a migração em massa de
praticamente todos rapazes para cidade sob o falso pretexto de viajarem para
estudar, errando pelas estradas seguindo o rastro deixado pelos passos
perfumados de Afrodite.
Como era de se esperar, migrei junto deles sob o mesmo
pretexto. Arrumei emprego em uma lanchonete, ganhando o bastante para uma
refeição e meia por dia, enquanto morava em uma espelunca mais habitada por
ratos e baratas que por gente. Não obtive notícias de Rebeca, até o dia em que
entrou pela porta da lanchonete onde trabalhava, mais linda que nunca, havia
trocado o vestido branco por uma saia delicada e elegante, cor de cobre, e
justa sobre suas formas ressaltando a graciosidade, seus cachos castanhos agora
quase alcançavam-lhe a cintura e ondulavam em movimentos hipnóticos. Seus
lábios, cujos movimentos conseguiam ser mais hipnóticos que o de seus cachos,
estavam vermelhos de batom e se fechavam sobre os do homem que a acompanhava em
um baque estrondoso, fazendo voar para longe os meus sonhos de juventude, as
únicas coisas que trazia na carteira.
O rapaz era alto, pelo menos meia dúzia de anos mais velho e
trazia consigo o ar de riqueza e classe que eu jamais alcançaria com minhas
roupas esfarrapadas e ausência do mínimo conhecimento de etiqueta. Saí mais
cedo do trabalho para descobrir onde viviam, era um edifício imponente e com
uma arquitetura riquíssima, “Se eu ganhasse uma dezena de vezes mais talvez
tivesse dinheiro o bastante para financiar um mês de aluguel” pensava eu, e fui
embora desiludido. Mas continuei com a rotina asquerosa para justificar minha
migração. As vezes passava em frente ao edifício dela e a via entrando ou
saindo com o braço envolto nele, as vezes iam na lanchonete em que trabalhava,
mas nunca dirigi a palavra a nenhum deles. Chegou um dia em que não a encontrei
mais. Não visitava a lanchonete a mais de um mês e havia o mesmo tempo não
vislumbrava sua saída do edifício onde morava. Acabei me informando com o
porteiro, afirmando ser um amigo de infância dela que tinha vindo visitá-la na
cidade. Ele me respondeu com pesar:
- Você não soube do acidente?
E contou a história de como a moça mais bela que já havia
visto em vida um dia chegou a portaria com sacolas cheias de laranjas maduras e
insistiu que não a ajudasse carregando-as, mesmo quando ficou sabendo que o
elevador estava quebrado. Quando estava chegando em seu andar, uma das sacolas
estourou e, escorregando nas laranjas caídas, acabou em uma queda horrível,
girando e sendo espancada pelos degraus até parar na portaria depois de rolar
por cinco andares de escadas. No fim ficou com a coluna completamente torcida,
de forma que suas nádegas agora estavam para frente e os joelhos para trás. O
rosto se manteve milagrosamente intacto após a queda que, de acordo com os
médicos, deveria ter sido absolutamente fatal e que inclusive, ninguém sabe
como, os nervos da coluna se mantiveram intactos, mesmo com as vértebras
torcidas do avesso. Diziam que a Morte não teria coragem de ceifar a vida de
uma jovem tão bela e que Deus não ousaria tirar o movimento das pernas de uma
moça tão pura. Tampouco os médicos ousaram destorcer a coluna dela, visto que a
condição de Rebeca era extremamente instável e do jeito que estava já carregava
chances de sobrevivência praticamente nulas. O noivo ficou furioso quando descobriu
que havia ficado aleijada, abandonou Rebeca, ainda desacordada, a própria
sorte. Estava em coma há um mês e ninguém sabia dizer quando ou se acordaria.
O porteiro me passou o endereço do hospital onde ela estava
internada e visitei-a algumas vezes, afirmando ser amigo de infância. Derramei
uma enxurrada de lágrimas por ela e ninguém duvidou de que falava a verdade.
Visitei-a no mínimo uma vez por semana durante 5 meses até que despertou, não
me reconheceu, é claro, mas os médicos diziam “É normal que pacientes, após
muito tempo em coma, não recuperem a memória toda de uma vez, ocorrendo
progressivamente” e eu concordei “É, deve ser isso”. Me surpreendi junto dos
médicos quando vimos a moça das laranjas, agora com a metade inferior
invertida, se levantar e caminhar destrambelhadamente com passos, não mais
graciosos como o de ninfa, mas confusos como o do folclórico Curupira.
Apesar de enfrentar o choque inicial após a saída do coma, a
moça das laranjas, agora uma mulher invertida, em pouco tempo recuperou seu ar
alegre e jovial capaz de seduzir qualquer homem que ousasse se aproximar demais
ou que olhasse em seus olhos de mel por mais de que alguns segundos, se perdendo
eternamente em um vórtice caramelado.
Após sair do hospital se desculpou comigo por não ter
lembranças profundas minhas, apesar de realmente se lembrar de ter me visto
próximo dos pomares em que caminhava na infância. Tentei me aproximar mais
dela, porém, por mais simpática e alegre que sempre se mostrasse, eu não
conseguia transpor a barreira que a dizia pertencer a um mundo além do meu, a mesma
barreira que impediu a mim e os outros garotos de descobrirem o nome dela por
quase 20 anos.
A mulher invertida agora caminhava pelas ruas deixando
pegadas que levavam os seus admiradores a se perderem na mata, deixando nos
homens não uma impressão de repulsa ou estranhamento e vista de sua
“deficiência”, mas uma atração hipnótica pela forma com que conseguia manter o
tronco curvado para traz, sensualmente, e por tempo indefinido sem se cansar. O
homem que a abandonou no leito do hospital acabaria por rastejar aos seus pés
implorando perdão, apavorado por sua própria estupidez de ter deixado uma
mulher de tamanha formosura a própria sorte. Vendeu seu apartamento, carro e
roupas, deixando todo seu dinheiro aos pés dela para provar seu amor, mas os
impactos em sua cabeça, causadores do semestre em coma, aparentavam ter apagado
todas memórias dele.
O ex-noivo se entregou a loucura e acabou com a própria
vida, junto de outros homens jovens, velhos, solteiros e casados, com ou sem
filhos. Todos se atiraram desesperadamente do abismo devido a intensidade do
amor alucinado que consideravam impossível. As outras mulheres então acabaram
por se desesperar com o completo abandono. O que aquela moça teria e elas não? Visualizaram
então a coluna torcida. Em poucos dias dezenas de mulheres acabaram
paraplégicas, tetraplégicas ou mortas na tentativa de tornarem-se mulheres
invertidas, sem sucesso algum.
Seis meses após sair do coma, a mulher invertida deixou para
trás uma cidade de suicidas e cadeirantes, voltando para os pomares onde
dançaria novamente como uma ninfa, deixando pegadas contrárias pela terra e
levando homens a perdição eterna em meio aos laranjais.
Massa, gostei da ideia e de como ela foi desenvolvida. De cada parágrafo ter seu ápice, ter sua finalidade. E a forma como a história foi descrita, que faz querer ler mais.
ResponderExcluirE o final foi terrível! Curti.