quinta-feira, 27 de março de 2014
Dedinho
Depois de ler que no futuro,
todos os homens vão nascer sem o dedinho do pé, ela cortou e mandou pra
mim. Embalagem bonitinha, com laço e tudo. Não preciso de você, do
mesmo jeito que não precisamos do dedinho, dizia o bilhete cravado com
um alfinete tão fundo que só se via a cabeça dele. Ainda dei um beijo
naquilo. Frio como seus lábios, criança.
sexta-feira, 21 de março de 2014
Lábios de Mel e Cachos de Papel
Era uma menina delicada e amarga. Ácida e doce. Com emoção
derramava sobre as páginas de sua própria história, lágrimas de mel. As páginas
deixavam o mel entrar, como favos de papel feitos por abelhas de tinta. A mesma
tinta que escorria das asas das abelhas ganhava vida à luz da lamparina, quando
os olhos da mocinha cruzavam as páginas aconchegantes de histórias que chegavam
a ser, para ela, mais confortáveis que a própria cama.
Os poucos livros de sua modesta prateleira eram sua pequena
galeria de sonhos e milagres, os melhores amigos que conheceria por um bom
tempo e com quem se refugiaria de qualquer perturbação que ocorresse por sua
casa vazia, sem qualquer outra criança além dela. Os que tem irmãos, sejam mais
novos ou mais velhos, sabem o quão reconfortante pode ser ter alguém com quem
conversar sobre qualquer coisa não compreendida pelos adultos. Quando uma
criança conta um sonho, os adultos fingem que escutam e, mesmo que escutassem de verdade,
jamais entenderiam. Quando uma criança passa muito tempo na triste companhia
dos mais velhos, ela passa a se esquecer de como sonhar, seja durante seu sono,
a noite, seja durante seus dias, olhando para as nuvens em forma de golfinhos
pulando sobre arcos no mar de estrelas. Assim uma casa com dois adultos e uma
criança, em pouco tempo se tornaria uma casa de três adultos, mesmo que os pais
ainda vissem na menina uma criança, assim como as demais pessoas grandes, sem
perceber que a verdadeira diferença entre um adulto e uma criança é que um
deles já sepultou todos seus sonhos.
A menina passaria o resto de seus dias sendo
incapaz de sonhar qualquer coisa que fosse, assim aconteceria se em suas
prateleiras não explodissem de dentro das páginas milhares de letrinhas
luminosas, vagalumes de tinta que juntos formavam palavras, imagens, sonhos
palpáveis. Dentro dos livros a menina tinha irmãos e irmãs, com quem poderia
dividir seus sonhos, pedir conselhos, compartilhar emoções e bons momentos. Ao
fechar das páginas voltava a sua a vida de adulta em corpo de criança, aguardando
pacientemente o momento de se permitir navegar com seu barco de papel,
com seus
cachos ao vento,
pelo mar de histórias que, secretamente, fazia parte de sua família.
Mais tarde a pequena adulta
tornou-se uma jovem adulta e descobriu a terra mística onde poderia alegremente
se perder e se encontrar com seus amigos mais íntimos e sinceros, a biblioteca.
Nela seus cachos de papel despencavam sobre as páginas e se esquecia
de como distinguir onde era parte da história e onde era parte de si mesma,
pois como sabem todos aqueles que já leram com amor, é sempre as duas coisas. Por
lá permanecia o quanto podia, deixava marcas invisíveis de lábios feitas com
seu batom de mel pelas capas dos que mais amava. Então era obrigada a ir para
(deixar para trás?) sua casa, voltando para junto de seus pais.
Assim cresceu a moça, reclusa a
sonhar só com as páginas abertas, incapaz de se lembrar sobre qualquer coisa
que lhe invadisse o sonho noturno, tal como um adulto se esquece sem notar,
e passando os dias guardando memórias sem grande convicção ou entusiasmo,
deixando caírem entre os dedos, visto que, em sua condição de adulta, mais
raramente as coisas lhe causavam o deslumbramento necessário para se sentir no
ímpeto de guardá-las com carinho. Talvez ela se perdesse em uma espécie de Alzheimer
prematuro, do tipo que chega logo após a maioridade, se não fossem os livros.
Por mais que as condições de uma casa onde viviam
três adultos desde pequena tenha cristalizado no cerne da moça uma maturidade
estável, a literatura contagia pelas bordas a dentro da alma trazendo consigo
resquícios dos sonhos de criança. Pode se levar décadas, mas livros são capazes
de rejuvenescer o cerne de um adulto, devolvendo-lhe a capacidade de sonhar e
se deslumbrar com qualquer coisa que não seja séria o bastante para chamar a
atenção dos mais velhos, a dança romântica de dois cisnes sobre a água, carpas
coloridas dançando dentro de uma gota de orvalho que escorre pela folha e pinga
na língua da moça, "Gosto de arco-íris" pensa ela. Dentro de seu
coração descongela um floco de amargura lá presente desde a infância, quando
ocorreram as nevascas de palavras rudes verbalizadas pelos pais, as quais
acabaram por soterrar os sonhos da menina.
Moça, mulher, menina, transita entre as paisagens de mundos distantes e, quase imperceptivelmente, volta a ter vislumbres das imagens que sonha ao se deitar. A neve amarga se derrete e sob ela encontra um sonho doce, morde, recheio escorre e a menina transborda de doçura.
terça-feira, 18 de março de 2014
Mercadinho
Crédito ou Débito? Só o suco mesmo, obrigado. Depois daquela olhada clássica que já recebi muitas vezes na vida, falei: Opa, é crédito mesmo. Mas talvez esse não tenho sido a pior coisa dessa hora. Ela colocou o cartão na máquina, virou o aparelho pra mim e disse: Senha. Olhei para o teclado, olhei pra ela, dei um sorrisinho envergonhado e disse: Guarda aí que venho pegar depois. Não lembrava da senha. Não lembrei ela de jeito nenhum. Fui o caminho todo pensando nela e simplesmente não lembrava. Nem mesmo um númerozinho. É como se eu nunca tivesse feito aquela senha. É como se alguém tivesse colocado aquele cartão no meu bolso e eu tivesse acreditado que tinha um cartão na mesma hora. Acabei tendo que ir ao banco trocar de senha e anotar ela num papel, nunca me imaginei fazendo isso antes dos 70 anos. E eu tinha só 23. Mas nada demais, talvez um problema com excesso de pensamento no trabalho, nada para se preocupar, era só uma senha que tinha esquecido completamente. Apesar de ter pesquisado os sintomas na internet, não me assustei. Alzheimer. Algumas coisas batiam, mas achei que era comum. Quem mais lembra o mês que estamos?
Meu primeiro esquecimento foi no meio da selva, durante o ano que servi, fiquei preso durante um tempo por não saber o nome do nosso superior. Era até entendível, só senti saudades dos alvoreceres verdejantes na selva, daquele arzinho pela manhã... Tinha 18 anos só e já me esquecia do mês que estávamos e de algumas caras. Aconteceu até de eu esquecer o rosto de uma quase namorada que tive. Antes de sair de casa, levava uma foto dela no celular e ficava a espera dela, para lembrar como era o rosto dela e não passar vergonha como antes. Achava que era comum essa falta de memória. Deveria atingir algumas pessoas vez ou outra. Mas ela sempre foi aumentando e me atrapalhando. Nomes, rostos, senhas. Ao passar do tempo, tive que mudar de mercado, para uma mercearia, onde o dono me conhecia e estava disposto a deixar fiado de um dia para o outro e também porque não tinha maquininha de cartão. Parecia um completo retardado ao colocar a mão no bolso e falar pra ele: É, fica pra outro dia. Sempre pagava, não tinha problema. O problema era que a mercearia não tinha nada. Tinha dia que não tinha nem pão. Ela não me roubava e eu sempre o pagava, era um relacionamento muito bom.
Acho que isso foi causado pela minha preguiça. Eu nunca fiz nada na vida. Eu nunca nem cheguei a trabalhar. Eu ficava horas e horas sem fazer absolutamente nada, sentado numa cadeira debaixo do ar condicionado. Não fiz nada direito na minha vida. Era tudo pela metade e por incrível que pareça, não era alguém tão ruim assim, era um ser humano mediano em todos os sentidos, com treinamento militar e que agora não conseguia se lembrar das suas senhas e nem do mês que estava. Temos 30 dias para lembrar o mês que vivemos, mas desde criança eu nunca consegui. Talvez tenha nascido meio retardado. Acho que nasci pela metade, como tudo que fiz na vida. Fiquei algumas semanas só com as pernas para fora pra depois sair inteiro, porque o corpo da minha mãe me expeliu para fora, porque se dependesse de mim, nunca teria saído dali. Nunca teria saído de lugar nenhum, era sempre o último a deixar a selva. Ah, a selva e o seu cheirinho tão peculiar, sua cor verde em todos os cantos, a paz que aquilo trazia, sua chuva. Mas agora tudo isso era apenas um pensamento antigo que não esquecia. Aonde morava, a chuva não durava um cigarro.
O verde do alvorecer na selva, me fazia muito querer abandonar meu escritório para um emprego no meio da mata. Fazia algumas viagens para cidades bem pequenas coberta por verde em todos os cantos. Gostei tanto de uma delas, que decidi abrir um mercadinho por lá mesmo. Só para sobreviver e viver a vida normalmente, talvez casar, talvez concorrer a vereador, poucas pessoas, poucos votos... Ou talvez só para ficar numa cadeira, ouvindo uma rádio AM qualquer e nunca ter nada para seus clientes, mas vez ou outra deixar fiado, só para manter o legado daquele homem aceso.
quarta-feira, 12 de março de 2014
Insepulto
Um pesar atlântico, como se sustentasse não o céu, mas o
oceano sobre os ombros. Como um sonho quente, acolhedor, na madrugada fria
vinham até mim as lembranças do dia em que morri, enquanto continuava, contra
minhas vontades, a pulsar qualquer coisa sem fundamento por minhas veias e
alguma ideia sem sentido por minha mente.
Estava cansado como jamais estive antes. Consegui dormir bem
por uns tempos. Hibernei além das justas oito horas por meia dúzia de noites.
Mas não se pode compensar todo cansaço acumulado de uma vida em menos de uma
semana. Meu coração quicava desesperado pelas paredes de minha caixa torácica,
tentando quebrar as barreiras que o prendiam aqui e escapar desse corpo
arruinado, condenado a desfalecer em cinzas assim que queimar sua última grama
de vontade, o que ocorreria ao menor movimento brusco.
Desejei a morte. O DESCANSO eterno. Não sei se vocês
conhecem a sensação, mas quando se está muito, muito cansado mesmo, seu corpo
passa a ter preguiça de realizar as funções mais básicas, como comer, dormir ou
se matar. Não havia nada que me prendesse a vida, meus “grandes sonhos” há
muito foram superados pela ânsia por descanso, “descanso eterno" então, meu
coração se alegrava só de imaginar coisa tão bela.
Meu plano era: Capengar por uma rua qualquer e me deixar
cair sobre a rua logo na passagem de um caminhão, o qual esmagaria minha cabeça
ou algo assim, me fornecendo o tal descanso ininterrupto pelo qual eu tanto
ansiava. Foi a ideia que mais me entusiasmou por semanas, até que a sorte bateu
em minha porta e vinha um caminhão pela direita em minha direção. Na próxima
pisada em falso eu conquistaria minha liberdade! Mal podia me conter, fui
arrebatado por uma imensa felicidade, não me sentia tão vivo há meses!
Foi esse o momento em que morri.
Ou em que morreu toda minha esperança e qualquer vestígio de
paz que ainda errava pelo meu miocárdio, se há qualquer coisa que posso chamar
de vida em mim além disso, desconheço.
Senti uma mão se agarrando a meu braço esquerdo logo após
minha pisada em falso, a mão me puxou, o caminhão passou. Ouvi uma voz feminina
em um tom que, no momento, só poderia soar para mim como deboche, piada:
- Essa foi por pouco em.
Virei-me para vomitar todos palavrões conhecidos, além de
meia dúzia de recém inventados, quando me deparei com uma belíssima moça de
cachos negros, olhos profundos como a noite e com o sorriso mais anestésico que
já vislumbrara. Engoli as ofensas que enchiam minha boca, senti o amargo da
bile. “Minha desgraça é tanta”, pensei eu, “que sequer consigo me zangar com a
dona de todo meu infortúnio”.
- É, foi por pouco... – Respondi com um tom sorumbático.
- Você não parece muito feliz por continuar vivo. – Observou
ela.
Abri a boca para responder, mas não saiu nada. Ao invés,
tentei dar o sorriso mais simpático que pude, com os olhos fechados para que
ela não olhasse através deles. Em vão, eu era para ela translúcido como
cristal.
- Parece estar muito cansado... E triste. Venha tomar um
café comigo, talvez você se anime um pouco.
Ouço o som do motor de outro caminhão próximo. Seria tarde
demais para me atirar sob ele?
Solto um suspiro cansado, acumulo com ele a energia
necessária para dar uma resposta. A moça me olhava calmamente, com um sorriso
simpático e caráter firme, como se pudesse esperar o dia todo por minha resposta,
até eu me sentir no ímpeto de responde-la. Sorri cansadamente – não era capaz
de fazer de outra forma – e respondi:
- Eu vou aceitar.
Então ela deixou resplandecer um cativante sorriso em sua
face, enquanto deitava levemente a cabeça. Eu começava a perder aos poucos meu
ar cansado e recobrar algum ânimo antigo, esquecido há anos. Ela colocou o
braço em torno do meu, o mesmo que havia segurado evitando minha morte,
provavelmente na expectativa tanto de me guiar quanto de impedir que eu caísse
para morte no menor desvio de olhar, e fomos para uma lanchonete que ela
conhecia.
Na lanchonete escolhemos uma mesa próxima à janela, pois
começava a cair lá fora uma bela e leve garoa de verão. A garçonete se
aproximou da mesa e perguntou com um sorriso político:
- O que vão querer?
A moça, a qual eu ainda não sabia o nome, respondeu:
- Um café expresso puro e um calzone de brócolis com
requeijão em pó.
A garçonete ficou olhando para ela por algum tempo, como se
esperasse o término da piada e, vendo que a moça não a completava, perguntou:
- Requeijão em pó?
- É isso mesmo. – Respondeu a moça, como se não entendesse o
fundamento da pergunta.
- Desculpe moça, mas não temos isso. – Respondeu a
garçonete.
- É claro que tem, eu sempre como aqui. – Disse ela
convencida, deixando a garçonete insegura, mas então completou, para o alívio e
confusão de ambos nós que escutávamos – Vocês chamam de ricota.
A garçonete olhou por mais alguns segundos para ela,
aguardando a graça da piada, mas por fim lançou seu olhar inquiridor sobre mim.
Sem que precisasse verbalizar a pergunta eu já respondi:
- Um cappuccino e um x-salada.
Após a saída da garçonete eu mesmo reforcei a pergunta.
- Requeijão em pó? – Algo que eu sequer imaginava como
poderia funcionar, visto que requeijão é úmido, cremoso, enquanto pó é seco por
definição, sendo a união dos dois uma antítese das mais profanas.
- Você não acha que ricota parece com requeijão em pó? –
Respondeu ela retoricamente. Eu, que decidi não levar o tema adiante, mudei de
assunto.
- Acabo de perceber que ainda não sei seu nome.
- É Caroline, e o seu?
- Diego.
A conversar se prolongou de forma agradável após a pequena
incongruência do “requeijão em pó”, não combinávamos muito, mas isso
estranhamente causou mais uma sensação de curiosidade e deslumbramento que
repúdio. Talvez pudéssemos encontrar no outro qualquer coisa que jamais
encontramos em nós mesmos. Certamente ela transbordava o entusiasmo que eu já
havia esquecido de possuir, enquanto eu era dono de introspecções profundas,
encontradas nas profundezas de onde por muito suportei o peso dos mares.
Saímos da lanchonete e fomos caminhando sem rumo definido.
As vezes conversando, as vezes em silêncio, mas um silêncio confortável,
acolhedor junto da presença do outro. Soube naquele momento que ficaria junto dela
até o fim de meus dias.
Mas ali mesmo meus dias chegaram ao fim.
Em um momento ela estava sorrindo para mim, caminhando
despreocupadamente, e no outro tropeçou em um buraco da calçada, que além de
tudo estava lisa devido a garoa que tinha caído a pouco, vi esse instante em
câmera lenta tantas vezes na memória, mas ali passou rapidamente, como um
pardal se esquivando de seu apanhar, escapando entre seus dedos. Estava cansado
demais para uma reação rápida, por mais que minha mente houvesse relaxado com a
presença dela, meu corpo permanecia acorrentado ao peso do cansaço. Enquanto
ela caía, tentei esticar meu braço o mais rápido que pude, até conseguir
envolver o braço dela antes que caísse por completo no asfalto e, de imediato,
comecei a puxá-la para cima.
Mas era como tentar tirar alguém de uma guilhotina que já
começou a descer.
Um caminhão passou decapitando-a e deixando um corpo acéfalo
em meus braços.
Se eu soubesse como chorar, deixaria o oceano jorrar de meus
olhos. Mas só os vivos choram. E eu morri ali mesmo, junto dela. Morte
insepulta e desesperançada. Meus membros continuam a se mover pelas ruas
mecanicamente, sacos de areia puxados por cordas invisíveis de marionete,
cordas prestes a se arrebentar na esquina seguinte com a passagem do
misericordioso veículo pesado que sepultará esse corpo, há muito sem vida, de
uma vez. Para que finalmente descanse junto de sua alma, perdida há muito.
terça-feira, 11 de março de 2014
Fogo
No verão de 2006, pela primeira vez na vida, eu ia celebrar
o carnaval. Eu e alguns amigos fomos para uma casa de praia. O preço estava
alto mas achei que ia compensar. Emprestei uma mala, peguei o que sobrou do
resto do incêndio e fomos de carro, não era tão longe. 6 ou 7 horas de viagem
sem fazer absolutamente nada, só conversando e tentando não pensar nos
problemas que o incêndio causou. A primeira música que tocou era Highway to
Hell do AC/DC. Por Deus, por que não músicas melhores como planeta água do Guilherme
Arantes? Se bem que Guilherme Arantes me lembrava mais problemas, os da minha
ex. Mas isso era o de menos, a primeira pergunta direcionada a mim foi: Ei,
cara, e o incêndio? Putos.
Ah é, preciso contar o antes, do incêndio. Morava não muito
longe da casa dos meus pais, pra falar bem a verdade, no mesmíssimo bairro onde
fui criado. Era um bom bairro, meio calmo e poderia comer lá nos finais de
semana. Fora o carro que usava de vez ou outra. Dirigia um chevrolet fodido,
antigo pra caramba, aquilo não valia nada. E então, minha mãe me liga: Filho,
sua casa pegou fogo. Mas que bela notícia dada da melhor forma possível. Minha
casa pegou fogo. Eu sequer terminei de pagar os eletrodomésticos, sequer tinha
começado a me mudar, tinha caixas de roupas e livros e tudo foi perdido.
Cheguei lá, depois de ficar esperando o maldito chevrolet esquentar pelo que
pareceu uma eternidade, e fui recebido pelos bombeiros, alguns vizinhos e meus
pais, um monte de papelada, um monte de gente querendo falar comigo e eu não
conseguia sequer pensar no que causou aquilo, no depois, só conseguia ver a
casa com fumaça saindo pelas janelas, bombeiros entrando e saindo e aquela
visão preta dentro da casa. Por que diabos isso aconteceu comigo? Eu nem carne
como para não machucar os animais, sou gentil e sempre dava meu lugar nos
ônibus para os mais velhos, quando ainda usava transporte público.
Fogo, seu filho da puta. Durante o carnaval, só serviu para
acender cigarro e aquela churrascaria. Acredita que os putos só comeram carne
com pão durante todos os dias? Carne e pão. Sorte que vez ou outra tinha uma
saladinha pra colocar no pão, além da manteiga. Fora o clássico: Mas nem
frango, cara? Só come mato? Estava um pouco desapontado e puto mas acabou sendo
um bom feriado. Até comi uma carninha quarta-feira, depois de alguns anos sem.
Lá pela tarde, um amigo meu me comprou uns tofus e disse: Feliz aniversário
adiantado. Não sei se ele sabia, mas eu adorava tofu. Foi um belo de um
presente. A viagem foi agradável, tirou um pouco o desespero de ter a casa
queimada pelo maldito fogo.
Minha mãe me levou numa Igreja para me benzer, achava que
tinha sido algum diabo que tacou fogo em casa. Quando pisei na Igreja, fui
tocado. Comi carne em um dia que não se pode comer carne. Eu comi carne na
quarta feira santa. Não sei bem como karma funciona, mas definitivamente me
foder e esperar pela minha cagada não é lá algo muito humano e piedoso não. Não
tinha seguro nem nada que pudesse me ajudar. A única coisa que tinha era tofu
que sobrou, uns 3 cigarros na carteira e minha dívida com karma.
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