terça-feira, 18 de março de 2014

Mercadinho

Crédito ou Débito? Só o suco mesmo, obrigado. Depois daquela olhada clássica que já recebi muitas vezes na vida, falei: Opa, é crédito mesmo. Mas talvez esse não tenho sido a pior coisa dessa hora. Ela colocou o cartão na máquina, virou o aparelho pra mim e disse: Senha. Olhei para o teclado, olhei pra ela, dei um sorrisinho envergonhado e disse:     Guarda aí que venho pegar depois. Não lembrava da senha. Não lembrei ela de jeito nenhum. Fui o caminho todo pensando nela e simplesmente não lembrava. Nem mesmo um númerozinho. É como se eu nunca tivesse feito aquela senha. É como se alguém tivesse colocado aquele cartão no meu bolso e eu tivesse acreditado que tinha um cartão na mesma hora. Acabei tendo que ir ao banco trocar de senha e anotar ela num papel, nunca me imaginei fazendo isso antes dos 70 anos. E eu tinha só 23. Mas nada demais, talvez um problema com excesso de pensamento no trabalho, nada para se preocupar, era só uma senha que tinha esquecido completamente. Apesar de ter pesquisado os sintomas na internet, não me assustei. Alzheimer. Algumas coisas batiam, mas achei que era comum. Quem mais lembra o mês que estamos?

Meu primeiro esquecimento foi no meio da selva, durante o ano que servi, fiquei preso durante um tempo por não saber o nome do nosso superior. Era até entendível, só senti saudades dos alvoreceres verdejantes na selva, daquele arzinho pela manhã... Tinha 18 anos só e já me esquecia do mês que estávamos e de algumas caras. Aconteceu até de eu esquecer o rosto de uma quase namorada que tive. Antes de sair de casa, levava uma foto dela no celular e ficava a espera dela, para lembrar como era o rosto dela e não passar vergonha como antes. Achava que era comum essa falta de memória. Deveria atingir algumas pessoas vez ou outra. Mas ela sempre foi aumentando e me atrapalhando. Nomes, rostos, senhas. Ao passar do tempo, tive que mudar de mercado, para uma mercearia, onde o dono me conhecia e estava disposto a deixar fiado de um dia para o outro e também porque não tinha maquininha de cartão. Parecia um completo retardado ao colocar a mão no bolso e falar pra ele: É, fica pra outro dia. Sempre pagava, não tinha problema. O problema era que a mercearia não tinha nada. Tinha dia que não tinha nem pão. Ela não me roubava e eu sempre o pagava, era um relacionamento muito bom.

Acho que isso foi causado pela minha preguiça. Eu nunca fiz nada na vida. Eu nunca nem cheguei a trabalhar. Eu ficava horas e horas sem fazer absolutamente nada, sentado numa cadeira debaixo do ar condicionado. Não fiz nada direito na minha vida. Era tudo pela metade e por incrível que pareça, não era alguém tão ruim assim, era um ser humano mediano em todos os sentidos, com treinamento militar e que agora não conseguia se lembrar das suas senhas e nem do mês que estava. Temos 30 dias para lembrar o mês que vivemos, mas desde criança eu nunca consegui. Talvez tenha nascido meio retardado. Acho que nasci pela metade, como tudo que fiz na vida. Fiquei algumas semanas só com as pernas para fora pra depois sair inteiro, porque o corpo da minha mãe me expeliu para fora, porque se dependesse de mim, nunca teria saído dali. Nunca teria saído de lugar nenhum, era sempre o último a deixar a selva. Ah, a selva e o seu cheirinho tão peculiar, sua cor verde em todos os cantos, a paz que aquilo trazia, sua chuva. Mas agora tudo isso era apenas um pensamento antigo que não esquecia. Aonde morava, a chuva não durava um cigarro.

O verde do alvorecer na selva, me fazia muito querer abandonar meu escritório para um emprego no meio da mata. Fazia algumas viagens para cidades bem pequenas coberta por verde em todos os cantos. Gostei tanto de uma delas, que decidi abrir um mercadinho por lá mesmo. Só para sobreviver e viver a vida normalmente, talvez casar, talvez concorrer a vereador, poucas pessoas, poucos votos... Ou talvez só para ficar numa cadeira, ouvindo uma rádio AM qualquer e nunca ter nada para seus clientes, mas vez ou outra deixar fiado, só para manter o legado daquele homem aceso. 

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