quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Mulher Invertida



Vestido branco esvoaçante, cachos castanhos caindo sobre os ombros e sorriso cativante florindo pelos lábios que um dia amadureceriam atraindo mil homens com sua doçura. Nas maçãs do rosto trazia dois pomos maduros e nos olhos duas joias cristalinas cor de mel. Por muitos anos a moça das laranjas, a qual durante a adolescência, tanto eu quanto meus companheiros de traquinagens e rivais no amor, desconhecemos por nome, arrancou meus suspiros durante as tardes calmas de verão sentado na varanda olhando os pássaros dançando entre as folhas do pomar que se esticava até o horizonte. Dizíamos que o mundo era belo até onde se estendia o pomar, depois as únicas novas cores que conheceríamos seriam tons de cinza e os pássaros ficariam desafinados pela a falta de vitamina. Até hoje não lembro de ter encontrado, entre as bobagens ditas quando criança, palavras que se mostraram mais verdadeiras.

A moça das laranjas era filha do Sr. Trovieli, dono de quase todos pomares da região, cujas propriedades se estendiam além dos laranjais e, além da riqueza, dotado de uma sabedoria e caráter firme – visível em seus cabelos e barba grisalhos – com que conquistava a admiração e respeito de todos habitantes das proximidades. Ela saia todas as tardes com seu vestido branco esvoaçante, suas sapatilhas, também brancas – que dizíamos serem mágicas, pois quando as calçava ninguém saberia dizer se ela estava caminhando, dançando ou saltitando e seus movimentos pareciam ser lentos e acelerados simultaneamente – além de seu chapéu de palha com aba larga, com uma faixa azul próxima da borda terminando em duas fitas azuis que caiam de um dos lados dançando junto de seu figurino angelical no ritmo do vento e das criaturas que por ele orquestravam. Carregava em suas mãos uma cesta de palha, até então vazia, com a qual voltaria ao final da tarde recheada de frutos maduros, mas não antes de desaparecer e ressurgir entre as árvores em sua dança de ninfa, cuja mitologia acreditávamos ter se originado da mesma forma que a lenda da moça, filha de Afrodite, tínhamos certeza, com olhos de mel onde homens, mulheres e crianças mergulhavam e se afogavam em doçura.

Rebeca Trovieli, cujo nome só descobrimos quando já havia deixado o casulo da puberdade e estava se mudando para cidade em busca de estudo, um de seus admiradores acabou por descobrir, simultaneamente, ambas informações enquanto se escondia sob a janela da grande casa dos Trovieli em um domingo, buscando apenas satisfazer seu vício ao ouvir a voz e sentir o perfume da moça. Partiu na segunda se manhã e, sem saber, causou a migração em massa de praticamente todos rapazes para cidade sob o falso pretexto de viajarem para estudar, errando pelas estradas seguindo o rastro deixado pelos passos perfumados de Afrodite.

Como era de se esperar, migrei junto deles sob o mesmo pretexto. Arrumei emprego em uma lanchonete, ganhando o bastante para uma refeição e meia por dia, enquanto morava em uma espelunca mais habitada por ratos e baratas que por gente. Não obtive notícias de Rebeca, até o dia em que entrou pela porta da lanchonete onde trabalhava, mais linda que nunca, havia trocado o vestido branco por uma saia delicada e elegante, cor de cobre, e justa sobre suas formas ressaltando a graciosidade, seus cachos castanhos agora quase alcançavam-lhe a cintura e ondulavam em movimentos hipnóticos. Seus lábios, cujos movimentos conseguiam ser mais hipnóticos que o de seus cachos, estavam vermelhos de batom e se fechavam sobre os do homem que a acompanhava em um baque estrondoso, fazendo voar para longe os meus sonhos de juventude, as únicas coisas que trazia na carteira.

O rapaz era alto, pelo menos meia dúzia de anos mais velho e trazia consigo o ar de riqueza e classe que eu jamais alcançaria com minhas roupas esfarrapadas e ausência do mínimo conhecimento de etiqueta. Saí mais cedo do trabalho para descobrir onde viviam, era um edifício imponente e com uma arquitetura riquíssima, “Se eu ganhasse uma dezena de vezes mais talvez tivesse dinheiro o bastante para financiar um mês de aluguel” pensava eu, e fui embora desiludido. Mas continuei com a rotina asquerosa para justificar minha migração. As vezes passava em frente ao edifício dela e a via entrando ou saindo com o braço envolto nele, as vezes iam na lanchonete em que trabalhava, mas nunca dirigi a palavra a nenhum deles. Chegou um dia em que não a encontrei mais. Não visitava a lanchonete a mais de um mês e havia o mesmo tempo não vislumbrava sua saída do edifício onde morava. Acabei me informando com o porteiro, afirmando ser um amigo de infância dela que tinha vindo visitá-la na cidade. Ele me respondeu com pesar:
- Você não soube do acidente? 

E contou a história de como a moça mais bela que já havia visto em vida um dia chegou a portaria com sacolas cheias de laranjas maduras e insistiu que não a ajudasse carregando-as, mesmo quando ficou sabendo que o elevador estava quebrado. Quando estava chegando em seu andar, uma das sacolas estourou e, escorregando nas laranjas caídas, acabou em uma queda horrível, girando e sendo espancada pelos degraus até parar na portaria depois de rolar por cinco andares de escadas. No fim ficou com a coluna completamente torcida, de forma que suas nádegas agora estavam para frente e os joelhos para trás. O rosto se manteve milagrosamente intacto após a queda que, de acordo com os médicos, deveria ter sido absolutamente fatal e que inclusive, ninguém sabe como, os nervos da coluna se mantiveram intactos, mesmo com as vértebras torcidas do avesso. Diziam que a Morte não teria coragem de ceifar a vida de uma jovem tão bela e que Deus não ousaria tirar o movimento das pernas de uma moça tão pura. Tampouco os médicos ousaram destorcer a coluna dela, visto que a condição de Rebeca era extremamente instável e do jeito que estava já carregava chances de sobrevivência praticamente nulas. O noivo ficou furioso quando descobriu que havia ficado aleijada, abandonou Rebeca, ainda desacordada, a própria sorte. Estava em coma há um mês e ninguém sabia dizer quando ou se acordaria.

O porteiro me passou o endereço do hospital onde ela estava internada e visitei-a algumas vezes, afirmando ser amigo de infância. Derramei uma enxurrada de lágrimas por ela e ninguém duvidou de que falava a verdade. Visitei-a no mínimo uma vez por semana durante 5 meses até que despertou, não me reconheceu, é claro, mas os médicos diziam “É normal que pacientes, após muito tempo em coma, não recuperem a memória toda de uma vez, ocorrendo progressivamente” e eu concordei “É, deve ser isso”. Me surpreendi junto dos médicos quando vimos a moça das laranjas, agora com a metade inferior invertida, se levantar e caminhar destrambelhadamente com passos, não mais graciosos como o de ninfa, mas confusos como o do folclórico Curupira.

Apesar de enfrentar o choque inicial após a saída do coma, a moça das laranjas, agora uma mulher invertida, em pouco tempo recuperou seu ar alegre e jovial capaz de seduzir qualquer homem que ousasse se aproximar demais ou que olhasse em seus olhos de mel por mais de que alguns segundos, se perdendo eternamente em um vórtice caramelado.

Após sair do hospital se desculpou comigo por não ter lembranças profundas minhas, apesar de realmente se lembrar de ter me visto próximo dos pomares em que caminhava na infância. Tentei me aproximar mais dela, porém, por mais simpática e alegre que sempre se mostrasse, eu não conseguia transpor a barreira que a dizia pertencer a um mundo além do meu, a mesma barreira que impediu a mim e os outros garotos de descobrirem o nome dela por quase 20 anos.

A mulher invertida agora caminhava pelas ruas deixando pegadas que levavam os seus admiradores a se perderem na mata, deixando nos homens não uma impressão de repulsa ou estranhamento e vista de sua “deficiência”, mas uma atração hipnótica pela forma com que conseguia manter o tronco curvado para traz, sensualmente, e por tempo indefinido sem se cansar. O homem que a abandonou no leito do hospital acabaria por rastejar aos seus pés implorando perdão, apavorado por sua própria estupidez de ter deixado uma mulher de tamanha formosura a própria sorte. Vendeu seu apartamento, carro e roupas, deixando todo seu dinheiro aos pés dela para provar seu amor, mas os impactos em sua cabeça, causadores do semestre em coma, aparentavam ter apagado todas memórias dele.

O ex-noivo se entregou a loucura e acabou com a própria vida, junto de outros homens jovens, velhos, solteiros e casados, com ou sem filhos. Todos se atiraram desesperadamente do abismo devido a intensidade do amor alucinado que consideravam impossível. As outras mulheres então acabaram por se desesperar com o completo abandono. O que aquela moça teria e elas não? Visualizaram então a coluna torcida. Em poucos dias dezenas de mulheres acabaram paraplégicas, tetraplégicas ou mortas na tentativa de tornarem-se mulheres invertidas, sem sucesso algum.

Seis meses após sair do coma, a mulher invertida deixou para trás uma cidade de suicidas e cadeirantes, voltando para os pomares onde dançaria novamente como uma ninfa, deixando pegadas contrárias pela terra e levando homens a perdição eterna em meio aos laranjais.

Um comentário:

  1. Massa, gostei da ideia e de como ela foi desenvolvida. De cada parágrafo ter seu ápice, ter sua finalidade. E a forma como a história foi descrita, que faz querer ler mais.

    E o final foi terrível! Curti.

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